domingo, 8 de setembro de 2024

PROCESSO DE ESCRITA E CONSTRUÇÃO ESTÉTICA

 

Eu, Paula Santos, sou uma mulher negra de 38 anos de classe média baixa. Em 2006, vim do interior para Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, para estudar. Foi quando passei a morar no Edifício Barcelona, prédio da década de 70, de 17 andares, na região central da cidade, que abriga idosos remanescentes de sua fundação. Ao longo de mais de uma década, muitos dos moradores que convivi envelheceram, alguns morreram e uma diversidade de novos ocupantes foi chegando.

Sempre me intriguei com as complexas relações sociais, afetivas e políticas em fluxo no microcosmos deste prédio. Motivada pelo porteiro, de quem ouvi casos interessantíssimos, entrevistei moradoras na faixa dos 70 a 80 anos para pesquisa do meu curta Sala de Espera, cuja protagonista era uma senhora solitária. Histórias fantásticas de amor, paixões, mortes e luto me impressionaram. 

Numa visita de minha mãe, 75 anos, outra conversa me instigou: a revelação de que durante minha gestação ela não tocava sua barriga. Criada na roça, o bicho que mais tinha medo era aranha. Quando eu me mexia, ela pensava ser uma tarântula gigante dentro do seu corpo. Essa imagem forte ficou em minha cabeça.

Começo em 2018, então, a escrita de uma ficção inspirada por personagens reais que cruzei no prédio e vivências próprias. Fragilidades parte de uma curiosidade e fabulação sobre as narrativas e encontros possíveis caso as paredes do edifício fossem desnudadas. Assim, seria possível enxergar que existências solitárias fechadas em suas intimidades podem apresentar curiosas confluências e partilhar coletivamente de medos, angústias e desejos.

Regina (37, negra) e Heloísa (75, branca) são personagens fictícias atravessadas por muitos sentimentos e sensações suscitadas a partir dos encontros com as mulheres com quem cruzei. A história e as personagens são inspiradas pelas pulsões de vida e de morte presentes nos diversos movimentos e ciclos compartilhados. São personagens que vivem, ao longo do filme, o luto e a gestação dos outros e de si mesmas num contínuo processo de reinvenção.

Seus corpos e o corpo do edifício que habitam são os espaços onde ocorrem os conflitos paradoxais das limitações e potências que as regem, abrigando, condicionando ou deslocando seus desejos, medos e sonhos. As ideias de inércia, escoamento, corrosão, infiltração, demolição, transbordamento são movimentos que permeiam não apenas os espaços físicos, mas também seus imaginários e inconscientes. Tal potência e estranhamento serão transpostos para os campos visual e sonoro de forma a criar o universo conturbado em que elas se encontram. Também serão tensionados o contraste e a confluência dos diferentes ritmos e velocidades desses corpos. 

Esteticamente, o filme busca construir essa arquitetura subjetiva, por vezes fantástica, para dar conta dos instigantes e estranhos processos de transformação que atingem as protagonistas no decorrer de sua relação com a maternidade, o envelhecimento, numa linha tênue entre morte e vida, presença e ausência, fantasia e realidade, gestação e luto, dos outros e de si mesmas.

O encontro entre as duas acontece em um confronto e tensão devido a uma infiltração e obra que atinge seus apartamentos. Infiltração que também afeta suas vidas. A princípio, elas se vêem submersas, estanques diante dos acontecimentos que as paralisam.

No entanto, é nesta pausa compulsória, que são levadas a confrontar seus medos reais. É na convivência forçada com outra mulher que conseguem partilhar de suas íntimas FRAGILIDADES: a maternidade complexa que Regina vive com sua primeira filha e na relação com sua mãe; o que precisou abandonar e perder na sua obstinação pelo grande título no fisiculturismo; os sonhos e desejos que se transformam; o luto de um aborto  espontâneo vivido na juventude por Heloísa; o medo de Heloísa do envelhecimento, da morte dos seus contemporâneos e da sua própria morte, o medo do desaparecimento e da perda de sua identidade na velhice.

O medo que Regina carrega de aranhas e que projeta no ser que está dentro de seu corpo é antigo. Vem desde as cantigas de ninar e histórias de terror de sua avó na roça, cantadas para sua mãe e para ela, bebê. Histórias passadas de uma geração para outra que são reinventadas e transformadas, ao longo da dramaturgia do filme, na memória, na voz e nos corpos de Regina, Marlene e Brenda.

De início, uma aparente enorme distância separa as protagonistas: a raça e a cor da pele, a classe, a idade. Mas fisicamente, elas estão separadas apenas pelas paredes de um andar. E é justamente com uma estranha que conseguem compartilhar suas fragilidades e medos mais profundos, iniciando assim a construção de um improvável vínculo de cumplicidade. O encontro e a partilha entre mulheres tão diferentes as conduzem a questionar e revisitar seus sonhos, suas frustrações e a se reinventarem, buscando concretizar novos desejos e prazeres em seus contextos atuais.

Sonoramente, o filme busca construir os estranhamentos e tensões da narrativa. Sons extra-diégeticos que amplifiquem uma rachadura no teto, o fluxo lento de uma infiltração, um barulho interno da barriga são recursos que serão utilizados para expandir as bordas e contornos do dentro e fora. O som também vai explorar os atravessamentos do que está fora de quadro, a cidade que circunda esse prédio e como ela invade o quadro.

Os cenários revelam as personalidades das personagens e se transformam junto com elas.  Regina se mudou recentemente no início do filme: seu espaço se configura num ambiente mais arejado, prático, que ela vai preenchendo com suas referências pop. Junto com a gravidez, a obra afeta esse arejamento trazendo imposições e necessidades de rearranjos. Já Heloísa vive num espaço cheio de acúmulos, móveis mais pesados, muitos objetos, que carregam uma densidade. À medida que vai reconectando consigo, vai jogando fora o que não lhe cabe mais. As transformações dos ambientes - algumas operadas em cena - ao longo do filme, denotam a passagem do tempo de cerca de 8 meses. A história se passa com o tempo demarcado da gestação de Regina, descoberta no segundo mês de gravidez até o parto. 

Um personagem secundário de extrema importância é o porteiro noturno Damião, negro, obeso, 58 anos, há 10 trabalhando no edifício, pesquisador de alienígenas, fã de Hitchcock, que tricota durante as 8h de vigilância noturna e anseia pela almejada aposentadoria. Damião é confidente de Heloísa que tem o hábito de fumar na porta do edifício todas as noites já que seu amante não gostava do cheiro do cigarro. Também tem uma empatia enorme por Regina, moradora recente e uma das poucas pessoas pretas, como ele, que habita aquele espaço. As câmeras de vigilância, que ele evita observar todas as noites, carregam uma narrativa paralela no filme, pois elas são lentamente veladas por teias de aranhas, corrompendo sua função imagética pressuposta.

As personagens estão em supostos estados de espera. Mas a espera não é passiva. Faremos uso de planos sequências explorando os movimentos internos e externos contundentes que seus corpos e mentes atravessam. Experimentaremos formas que evidenciem como o corpo quebra mecanismos de repetição e automatismo quando algo sai do controle, gerando reações de estranhamento, tensão, contração e dilatação. Trabalharemos inventivamente planos que vislumbrem o esqueleto do prédio e a forma vertical na qual vivências diversas se sobrepõem e convivem tão próximas fisicamente, revelando a coreografia dos corpos que atuam neste espaço. O prédio é um personagem por si só que vai sendo observado e desvelado, assim como os afetos das relações. FRAGILIDADES investe bastante na composição dos atores e busca a base da dramaturgia na dialética do corpo e território, sua relação psicológica, emocional e social com o espaço, tensionando público e privado. 

Regina tem muito de mim. Ao circular em ambientes de classe alta, majoritariamente brancos, mulheres negras precisam resistir arduamente no enfrentamento do racismo para não ter suas identidades apagadas e conquistar espaços de poder. Já a luta e a resistência de Heloísa são de outra ordem. Ao furar uma estrutura tradicional da concepção de família e hipocrisias de uma relação falida, sofre consequências dolorosas. Me interessa a pesquisa das fricções vividas pelos corpos destas mulheres, um corpo negro atleta sendo radicalmente atravessado por uma gravidez; um corpo branco envelhecendo e sendo atravessado pelo luto.

Não busco com esse projeto criar dicotomias simplistas entre branca e negra, adulta e idosa. Busco me deslocar para a subjetividade do outro, entendendo que aqui construo personagens que carregam marcas estruturais da nossa sociedade, mas são singulares e complexos. Minhas investigações no cinema são atravessadas pelo teatro, performance e dramaturgias híbridas. A possibilidade de imergir e aprofundar nesta narrativa e linguagem após uma pandemia que afetou a percepção e a relação com a presença, o luto, o espaço de morada e vizinhança é algo instigante e desafiador.

Fragilidades busca trabalhar o que o escritor Jean Claude Carrière afirma como algo "que tentamos esconder de nós mesmos e dos outros, sem suspeitar de que ela, a fragilidade, na verdade, impulsiona nosso dia-a-dia, nos aproxima uns dos outros; longe de ser uma simples e irremediável fraqueza, se torna, porque ela nos é comum, o motor de toda expressão, de toda emoção e, freqüentemente, de toda beleza.”

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